A primeira vez que li este texto, foi numa ocasião de despedida (a mesma despedida que me levou a criar esse texto AQUI). Ele serviu perfeitamente como uma metáfora para a ocasião uma vez que a pessoa que partia, como nesse texto, estava abrindo mão da felicidade para ver outra pessoa segurar o guarda chuva e... bem, é melhor irmos ao texto.
Girlene Neri, foi assim que nos despedimos.
“A primeira meia dúzia de pingos de chuva caiu de
manso, apesar do escuro que o céu prometia desabar sobre o pedaço da cidade.
À saída da escola, nos portões abertos para a pequena
multidão de alunos alegres com o final das aulas, misturavam-se chuva, gritos,
guarda-chuvas, mais gritos, buzinas, olhares, corre-corre.
Dali, de onde eu estava, escondido sob a laje do pavimento de
cima, podia vê-la mexendo na mala escolar, à procura de alguma coisa. Um
guarda-chuva, certamente.
Quando ela viu que ele a olhava, desviou o verde de seus
olhos e continuou, embaraçada, procurando o guarda-chuva. Até encontrá-lo.
Ele foi aproximando dela. Parecia pouco à vontade, mas
decidido. Havia tempo ele a paquerava, de longe. Até achava ser correspondido.
Ela, desajeitada, abriu o guarda-chuva e preparou-se para
enfrentar a água que agora caía bem mais forte.
- Vou lá perto de sua casa, me dá uma carona no guarda chuva?
O preto dos olhos dele fazendo a pergunta corajosa para os
olhos verdes dela, quase vermelhos de vergonha.
- Se você quiser...
-Claro que quero. Não trouxe guarda-chuva, e se entrar nessa
me molho todo.
-Então vamos.
O guarda-chuva aberto acolheu os dois. Próximos,
emparelhados, roçando roupa com roupa, o coração dando pulos de contentamento.
-Que chuva, né?
-Inda mais sem esperar!
Um passo mal dado, uma poça d'água recém nascida, e os ombros
se tocaram num primeiro encontro, quase ingênuo.
-Desculpe.
-Não foi nada!
A chuva aumentou a intensidade. Caía mais forte e escorria,
danada e zombeteira, pelas abas do guarda-chuva.
-Você está se molhando.
-Você também.
-Não faz mal. Me dê sua mala, deixe que eu levo. Assim você
fica livre para segurar o guarda-chuva.
-Obrigado.
Na passagem da mala, dela para ele, as mãos molhadas se
tocaram levemente. O coração acelerou o ritmo e o rosto avermelhou-se.
A chuva ficou mais forte.
-Estamos nos molhando muito, vamos parar?
-Não, chuva é gostoso. Faz bem. É banho diferente. Lava tudo!
-Por minha culpa você está se molhando...
-Que nada, de qualquer jeito, nessa chuva, eu ficaria
molhada... O guarda-chuva é pequeno...
-É...
Instintivamente ele passou o material para a mão direita e
pôs seu braço esquerdo sobre o ombro dela.
-Se a gente se aperta um pouquinho debaixo do guarda-chuva,
se molha menos.
-Acho que sim...
-O braço puxou o corpo dela para junto do corpo dele. O
coração bateu mais depressa, o rosto queimava fogo, os corpos molhados
vibravam.
-Já estou quase chegando. Minha casa é aquela de muro
vermelho...
-Poxa, foi tão rápido...
Ele estreitou ainda mais o braço molhado. Não sentiu
resistência. Ela soltava sua emoção, esparramada pelo corpo, para o braço do
parceiro.
Apenas o cabo do guarda-chuva separava o desejo dos dois. Que
engraçado: apenas um pedaço roliço de madeira limitando a geografia quente dos
corpos. Em cima, embaixo, por todos os lados, a chuva forte derramava água
farta, festejando o encontro juvenil.
-Posso falar com você outra vez?
-Na escola?
-Também.
Ela tingiu de brilho novo o verde dos olhos e respondeu com
voz úmida, porém firme:
-Pode...
-Amanhã?
-Pode...
Eles selaram o acordo com o estreitamento maior das roupas
molhadas.
-Faz tempo que eu queria falar com você.
Ela sorriu e deixou escapar:
-Eu também.
A casa de muro vermelho chegou perto deles.
-Cheguei.
-Que pena!
-Você quer ficar com meu guarda-chuva?
-Não, já estou todo molhado.
-Leva...
-Não...
-...
-...
O coração a mil, bateria louca de escola de samba em dia de
desfile, o corpo molhado, a boca seca, o rosto pegando fogo. Estavam um em
frente ao outro, debaixo da chuva forte.
De onde eu estava, protegido pela chuva, eu vi o guarda-chuva
inclinar- se levemente para trás, cobrindo minha visão. Imaginei que esta
manobra acidental me impediu de ver um beijo, tamanha foi a pressa com que ela
entrou em casa e tamanha a alegria com que ele enfrentou a chuva, atirando para
cima alguns cadernos, pulando poças e esticando braços e pernas numa sinfonia
encharcada.
Foi mais ou menos assim que eu vi esse primeiro encontro dos
dois. Foi mais ou menos assim que ele me contou.
Foi assim, sem dúvida, que perdi minha primeira namorada”.
Edson
Gabriel Garcia
Postado por Kaio Rodrigues